gombe series | 100x80cm
Musambique
Pode um par de artistas caminhar juntos sem descurar o seu próprio caminho individual? Podem esses dois artistas partilhar o espaço de criação sem comprometerem o seu atelier mental? E como se traduz na sua visão individual a experiência comum da terra? Dessa fruição dos sentidos que é transplantada em resposta artística, o balde de um é o tambor de outro, pelo que a arte é uma tradução não literal, uma transformação plástica da impressão reactiva no artista. E se a reacção ao arrepio da paisagem e da experiência sensorial é marcadamente pessoal, o diálogo que resulta da obra de dois artistas sob a mesma influência descreve não só as suas diferenças plásticas mas também a diferença da sua resposta pessoal em relação ao mesmo estímulo.
Apesar de percursos singulares, a obra de Manuela Pimentel e JAS tem aqui um encontro peculiar. A sua exposição é o que foi filtrado da imposição da paisagem, geográfica e humana.
A tonalidade mais telúrica ou africana de JAS encontra o seu contraponto nos azulejos de Manuela Pimentel, e nesse sentido produz-se um encontro cultural preciso, luso-moçambicano, como se no encontro da arte individual houvesse vestígios de uma identidade cultural. Não é em vão que os artistas invocam a lição de autoridade do Camões da Ilha dos Amores. O seu encontro é mais do que pictórico ou afectivo, é essencialmente cultural, vencida a resposta emocional à ilha de Moçambique, como se de uma viagem ao passado se tratasse, onde as paredes contassem histórias preservadas do toque buliçoso do mundo, onde o mar fosse um túmulo líquido de contas, missangas e ouro adormecidas nos tempos.
O trabalho de Manuela Pimentel é exactamente um trabalho de resgate de materiais, uma cartografia do passado que tem em vista um testemunho alterado a partir do qual se reciclam histórias e olhares. JAS parece trazer ao papel a memória da madeira, assumindo nos riscos os talhes em relevo que se grava na madeira, replicando máscaras africanas como que para intuir nesse objecto uma diferença sensível, mas essencial.
Talvez o denominador comum seja o aproveitamento simbólico de uma carência, corporizada nos materiais que assumem uma dimensão primitiva e inaugural. Porventura a beleza das suas impressões se materializa na rudeza de um trabalho que imita a singeleza dos adornos e das construções como hábitos e roupagens de beleza.
A obra agora dada ao público visa assim trazer impressões profundas de Moçambique em duas obras marcadas pelo signo da água. Acende-se o desejo, que se cava, diria o poeta lusíada, tão ligado a Moçambique como, adivinha-se, o par de artistas que aqui se mostram num aparente colectivo temático-emocional.
Daniel Jonas