Leitura Furiosa | ilustrações

Projecto da Associação Cardan, trazido a Portugal graças à perseverança de Luiz Rosas. Este ano a Leitura Furiosa decorre, em simultâneo nas cidades de Amiens, Porto, Lisboa e Kinshasa. Em Lisboa, a LEITURA FURIOSA acontece no Centro Mário Dionísio / Casa da Achada


A Leitura Furiosa é um acontecimento anual que dura três dias. Um momento privilegiado de encontro dos zangados com a leitura, a escrita e o mundo com os escritores. O momento único que permite a um não-leitor aproximar-se, com um escritor, da magia da escrita. Cada um faz ouvir a sua voz e segue um outro caminho.

Quem imaginou, há quase 20 anos, a Leitura Furiosa foi a associação Cardan, duma cidade do norte da França, Amiens, que trabalha para tornar o saber acessível àqueles que dele são excluídos, para quem o saber e a cultura devem nascer de uma ligação com o conjunto da sociedade, para quem a cultura pode e deve ser analisada por aqueles que não a praticam. Por aí passa a integração, a inserção.

Em 2000, a Leitura Furiosa chegou a Lisboa. Até 2004 foi a Abril em Maio, uma associação cultural, que a organizou. Em 2008 começou a acontecer no Porto, em Serralves. Em 2009, a Casa da Achada – Centro Mário Dionísio repegou na ideia, em Lisboa. Em 2010 continua, com mais grupos, mais escritores, mais desenhadores, mais actores e cantores.

A Leitura Furiosa destina-se aos que, sabendo ler, estão zangados com a leitura – crianças e adultos, homens e mulheres, empregados e desempregados, nacionais e estrangeiros.

Vários pequenos grupos de gente zangada com a leitura convivem durante um dia com um escritor, como entenderem fazê-lo. À noite, o escritor escreve um pequeno texto que oferecerá ao grupo quando, no dia seguinte, voltar a encontrar-se com ele. Passarão todos por uma livraria, por uma biblioteca. Os textos são ilustrados, paginados e os que vêm de França e Kinshasa traduzidos. No Domingo, terceiro dia do encontro, são tornados públicos numa sessão de leitura feita por actores e não-actores, alguns deles musicados e cantados, e publicados numa brochura. Posteriormente são editados em livro.

11062862_919706098052484_8940713664621366675_o


11216234_919706104719150_4765671060423761298_o

 

texto insert lf


1797475_733132263376536_438354125029522752_n

Verdade ou consequência


Regras são regras, mas a tentação é forte, a carne fraca, e um quadrado de chocolate faz água na boca.

As regras, diz-se, são para quebrar, as tentações para cair, o chocolate para derreter – na língua.

Diz-se que a boca é para calar, quando se passa de mão em mão o fruto proibido, o mais apetecido.

Mas pela boca morre o peixe, morre o segredo, corre a notícia do pecado partilhado, desperta a bomba na boca desbocada.

Resultado: depois do crime o castigo, depois do segredo a lição, paga-se verdade e consequência: paciência, paciência…

Resultado: o Carnaval cancelado. Nem mascarada nem matrecos, nada de pinguepong, nem campeonato de futebol.

Foste tu ou fomos nós, a quem fugiu a boca para a verdade, quem diz que diz, quem diz que disse, já cá não está quem falou.

Resultado, resultado: em vez de chocolate faz-se uma sopa, em vez de Carnaval desabafa-se num jornal, fica para outra vez, quem sabe, talvez.

Fica a boca amarga depois do doce, a guloseima ficou tão cara, quem pudesse na máquina do tempo regressar aquém da asneirada –

 a um Carnaval feito de festa, de grande festa festejada.

 

Pedro Eiras


desenho jas para texto saguenail

FUCKING ANGELS

 

 

O céu está vazio

enxotaram os anjos

o voo e a liberdade assustam tanto

que eles metem os pássaros todos na gaiola

 

Disseram-me: escolhe

a liberdade ou uma consola Nintendo

não me disseram quanto custava a liberdade

a consola, podia pagá-la a crédito

 

Disseram-me: escolhe

a liberdade ou uma sapatilha Nike

o sapato, se levar o par, eles fazem-me desconto

enquanto a liberdade vou ali e já volto

 

Disseram-me: escolhe

a liberdade ou a escravatura

a escravatura, tens cama, comida, roupa lavada e até um salário

a liberdade, nem sequer tens direito a férias e feriados

 

O céu está vazio

enxotaram os anjos

o voo e a liberdade assustam tanto

que eles metem os pássaros todos na gaiola

 

Disseram-me: vá lá

a liberdade é o carro

claro que só podes ir pelo alcatrão

não podes querer ser livre em toda a parte!

 

Disseram-me: vá lá

a liberdade é o trabalho

claro que há horários a respeitar

não podes querer ser livre a toda a hora!

 

Disseram-me: vá lá

a liberdade é a obediência

claro que é preciso aceitar a disciplina

não podes querer ser livre de qualquer maneira!

 

O céu está vazio

enxotaram os anjos

o voo e a liberdade assustam tanto

que eles metem os pássaros todos na gaiola

 

O que tem de ser tem muita força

mas isso não significa

que o que o que tem muita força tenha de ser

já estás endividado ao nascer!

 

É um truque que tem barbas

dão-te uma ficha para a mão

sem sequer te perguntarem se queres jogar

e só te explicam as regras depois!

 

A liberdade é cena que nunca quis

é um estorvo é complicado nem sequer tem piada

ainda por cima não rende nada

só me faz falta desde que a perdi

 

O céu está vazio

enxotaram os anjos

o voo e a liberdade assustam tanto

que eles metem os pássaros todos na gaiola

 

A minha mãe pariu um anjo

cortaram-me as asas à nascença

e depois castraram-me: os anjos não têm sexo

têm cu e chega para serem bem fodidos

 

Anjo, não tens onde te abrigar

até na discoteca te escorraçam

achei que mais valia ser diabo

então inventaram um inferno só para mim!

 

Para ter de novo a sensação de voar livremente

só me restam os charros e as punhetas

é proibido como todo o céu é proibido

até os sonhos  fazem parte do espaço aéreo sob vigilância

 

O céu está vazio

enxotaram os anjos

o voo e a liberdade assustam tanto

que eles metem os pássaros todos na gaiola

 

Saguenail com Gordinho, Koala, Mixa, Nelo, Txicoza, Pimpolho, Dans e JAS


ilustração 1

 


261777_563688913654206_1563946808_n

 

Havia de ser à hora, quando cinco minutos descontavam logo meia. Como era na fábrica. Fechou. A tua era a do Paulino, onde é agora o condomínio fechado. Vamos começar. Elas foram vindo depois, quase logo. Atrasam-se e às vezes nem vêm. Vieram.

A Freitas, cá fora, aproveitava as agulhas que não sabem estar paradas. Já estavam também a Madalena, a Conceição e a Belém. O tempo conta e a Emília não deixou passar, são 64 anos de vida resumida. Outros recordarão os sonhos que tiveste.

Dos romances dizes que só te interessam as histórias que tenham qualquer coisa de verdade, não têm que ser verdadeiras, mas que tenham aparência de verdade.

Tudo verdades, Emília, não te iludas. Se os gatos têm sete vidas, aqui contaram-se setenta. Sentada entre nós, a vida corrige o que não soubermos calar.

 

A Conceição foi casada 21 anos, ficou viúva. Deixou de comer livros quando a memória falhou entre duas tentativas de suicídio. Da primeira, fez tudo como devia ser. Deixara que o filho saísse para trabalhar, fazia naquela altura o turno das seis às duas, escreveu-lhe uma carta; lavou-se, vestiu-se, tomou todos os comprimidos de dois frascos e deitou-se na cama à espera. Não veio logo e deu-lhe tempo para pensar no filho só. Sem saber como, levantou-se, correu para a porta, abriu-a e tombou. Contou-lhe a vizinha que chamara os bombeiros, que a meteram num saco preto e a levaram escada abaixo, às costas, porque o elevador era pequeno demais. Pensaram que já ia morta. Da segunda vez deram com ela.

A Madalena é casada, tem três filhos e três netos. As meninas eram gémeas, pesavam 1,6Kg à nascença, pediram cuidados e a Madalena deu. Deu muito e ficou cansada, revoltada não. Mas o menino, Madalena queria muito. Não veio logo, veio tarde. Tu nem as pensas, disse-lhe o marido. Discutiram, mas abortar não queria. Criar outro filho aos 39 anos não foi fácil. Mas veio um grande homem.

 

A São disse logo que teve uma vida para o fracasso. E a voz sumiu-se um pouco mais. Perdeu um filho com seis anos, foi levado à frente de um carro, ainda foi na ambulância para o Porto… Nunca mais foi a mesma. É viúva há treze anos. Tem uma filha e netas. Tem a 4ª classe, nunca gostou de ler, mas agora até lê, quando vai à novena e lê para o povo todo.

 

A Belém gosta de ter sempre o que fazer. E não gosta de falar de coisas tristes. Vive em união de facto, não quis ter filhos para que não passassem o que passou: trabalhou desde que se lembra e começou a fazer descontos aos catorze. Uma vez, quando ainda trabalhava na fábrica, vinha de Vizela no autocarro, e às vezes passava no Continente, procurava um livro nas estantes do supermercado e ficava por ali um pouco a ler. Sem tempo para mais, marcava o livro, escondia-o atrás dos outros e no dia seguinte voltava lá para continuar.


166031_563688843654213_1068536672_n

 

A Rosa trabalhava num centro de dia. Agora está de baixa porque teve um AVC. Disse-o a olhar em frente, com os olhos bem abertos para não chorar. Tem 48 anos, o marido na Índia, um mês lá, um mês cá. A filha estuda na Universidade e o filho – riu-se – é Guarda Nacional Republicano. Rimo-nos todas: “Aqui é sempre bom ter um polícia à mão…”.

 

A Maria de Lurdes fez as contas: seis vivos, morreram três, mais dois abortos, teve onze filhos. Agora, da filha tem sete netos e uma neta. Ficou viúva aos 54 anos e foi casada durante trinta. Passou com ele a cruz de Cristo. Embebedava-se, era mulherengo e tinha depressões.

 

A Laurinda pediu desculpa, vem de trabalhar – e diz logo a Freitas: escreva aí - pediu desculpa por chegar atrasada! Desde há quatro anos faz o horário das 5 às 9 e mais umas horas durante o resto do dia. Já não se importa de acordar cedo, habituou-se, mas agora desligam as luzes todas no bairro, só deixam algumas na rua principal, e não se vê nada. Tanto é, que quando fez anos, em Novembro, a irmã ofereceu-lhe uma pilha. 48 anos, é casada. Teve dois filhos, mas o Hélder tinha paralisia cerebral e morreu aos dezanove. Tomou sempre conta dele enquanto o Senhor quis.

 

A Adelaide ia ser breve: 70 anos, viúva, reformada, um filho, uma neta e um neto. Mas ainda disse que lhe morreu outro filho com 36 anos (há 10 anos em Março, a 9 e a 16, perdera mãe e filho). Aquele dera-lhe cabo da cabeça, mas recuperara e há-de viver sempre assim como está agora. Com coragem, sem que façam pouco dela. “É assim mesmo!”, dissemos todas. Ainda há dias esteve a descascar favas junto ao campo de futebol – foi ao Bolama, vinha cansada, sentou-se ali e foi aproveitando o tempo.

 

A Freitas tem 59 anos, ficou viúva aos 35, grávida do filho mais novo. Tem cinco filhos. Vive com um, os outros estão todos arrumados, mas por perto. Longe só o mais novo, joga andebol no Benfica e é o capitão. Criou-os todos. Ajudava-os com os deveres da escola, agora ajuda as netas, cinco, e um neto. Sabe para tanto. E lê, lê jornais desportivos, mas não quer saber de histórias quando a sua já foi tão difícil. Sem dizer disse: enfarte aos 42 anos, dependente de insulina, asmática…. Era melhor se falássemos de coisas alegres.

Do S. João! O festão, os arcos, a letra, … é preciso fazer…, fazer, fazer. Mulheres fazedoras de alegrias.

 

Alegria é vê-las salvas, menos sãs, é certo. É saber que escaparam à vida com vida.

Estas mulheres foram de carne e osso. Sim, sabemos tão pouco. Com menos palavras, talvez outros dias, mais felizes, nos surpreendam.

 

Rosa Guimarães 

Leave a Comment!

Your email address will not be published. Required fields are marked *