Habitamos a nossa memória. A mnésica morada é composta por todas as casas por onde, no decorrer da nossa infância e da nossa ociosa mocidade, passámos. Basta que lá tenhamos sonhado, seguindo os contornos de um motivo no papel de parede ou de uma mancha de humidade, escutando a surda melodia das conversas atrás da porta; que lá tenhamos amado, espiando as brincadeiras do gato ou a toilette da criadinha ou o bolo a inchar no forno; que lá tenhamos sofrido, privados de sobremesa, fechados na despensa ou mandados para a cama sem um beijo sequer. Torta, retorcida e cheia de torres, de desvios, de escadas em caracol, de passagens secretas e de andares acrescentados, esta construção compósita vai-se modificando ao sabor das horas e dos humores, conforme a claridade e a penumbra da recordação, pelo que nunca acabamos de a percorrer, labirinto infinitamente extensível em que os corredores formam cotovelos a cada hesitação memorial e novas escadas surgem mal uma reminiscência destrava o seu trinco. Não é preciso espelho ou lura para resvalar para o passado. Na verdade, movemo-nos sempre, mais ou menos conscientemente, em dois tempos simultâneos: o da nossa azáfama, da nossa utilidade social, a que chamamos «presente» ou «realidade», caracterizado pela impossibilidade de parar, de reter, de olhar, tempo de trabalho, de olheiras, de corridas e de cegueira, e um outro, o da nossa memória, sonho mal acordado, devaneio, ilusão e magia, do qual só captamos estilhaços, deslumbramentos, lembranças misturadas, movediças, confusas, cerradas, cuja simples sombra é contudo luminosa. Ao caminhar na floresta, estugando o passo, seguimos invisíveis corredores de paredes forradas por decorativas folhagens, onde os ramos bifurcam em ângulo recto desenhando a moldura de uma janela que dá para o pátio das traseiras; e quando tropeçamos, dificilmente poderíamos decidir se esbarramos no pé de um móvel ou na voluta de uma raiz. Todos nós, do funcionário ao inválido, levamos uma vida dupla. A memória é povoada: enquanto somos capazes de evocar, para além do nome que usavam, os seus traços, os mortos vivem em nós. Observam as nossas deambulações através das portas entreabertas, pela lucarna do sótão, empoleirados como mochos nos armários ou debruçados sobre as varandas. Apagam-se quando passamos, emboscados no pó, por detrás dos panejamentos, derretidos na escuridão, sombras mais claras, discretos mas curiosos. Escoltam-nos silenciosamente, mais ou menos perdidos que eles mesmos estão no dédalo das nossas recordações. Incapazes de encontrar o caminho de regresso ao quarto, têm, resignados, de acampar num sofá ou numa carpete, noite após noite, na antecâmara onde a obscuridade os surpreende, mal o nosso sono suspende a sua ectoplásmica vida. O que eles mais temem é que nos apaixonemos. Os nossos ímpetos amorosos fazem com que nos esqueçamos de tudo e recambiam-nos para os territórios do nada. Preocupados com chegarmos a horas ao encontro marcado, apressamo-nos sem nos darmos conta dos terramotos que cada passada nossa provoca: os vidros vibram, o reboco esboroa-se, a fachada abre fendas. Pouco depois desatamos a correr; sacudida pelos abalos sísmicos do nosso galope, a canalização rebenta, os lanços de parede ruem, as vigas vergam e, entre encontrões e safanões, espancado, bombardeado e derrotado pela nossa paixão cega, todo o passado se desmorona, se dilui em poeira ao ritmo impiedoso do nosso coração distraído batendo.
Saguenail
Habitamos a nossa propria memória | Oil on Canvas | 200x800cm | 2007
Fundação Escultor José Rodrigues | Porto/Portugal | Habitamos a nossa propria memória
Fundação Escultor José Rodrigues | Porto/Portugal | Habitamos a nossa propria memória
Decomposto I | Oil on Vynil | 400x300cm | 2005
Fundação Escultor José Rodrigues | Porto/Portugal | Habitamos a nossa propria memória