Algumas notas sobre a Floresta ao negro de JAS
Run, run, Orlando; carve on every tree
The fair, the chaste and unexpressive she.
Shakespeare, As You Like It, III.2.
Pues, qué haces por aqui, por esta floresta de engaños?
Gil Vicente, Floresta de Enganos
Ao propor-nos a floresta, JAS emerge da água que, em Underwater, se apresentava como uma absolvição prévia a uma espécie de blitz interior que a derrocada da “aterragem” prefigurava e que parecia ser o destino requisitado pelo olhar do artista. A sua série, mais paisagista, parecia imbuída de um excesso visual, de uma exuberância comunicativa que propunha para o princípio da água um investimento concreto de desaguamento, por sua vez animado com a ideia de retrocesso na evolução. Mas nas peças finais de Underwater previa-se, afinal, o modo de entrada em Floresta Negra. À semelhança de um Orlando furioso, as peças declinavam um entalhe severo em madeira, em que o traço era feito pela ausência, pelo rasgo, como que querendo buscar pela escrita o objecto amado, que, para um artista visual, tem de ser objecto representado. A folha branca era negra, e o corte o traço que desvendava, através de uma solução de continuidade, o coração do representado, ou o que havia a ver no coração das trevas. Ora, o que Floresta Negra propõe é justamente o negativo disto, uma vez que o entalhe passa a ser em alto relevo, aliás texturado de modo muito profuso.
Se o desembarque interior nas cidades tendia, assim, a ser uma viagem de debate e não de remissão, em tudo, e paradoxalmente, contrária à ideia de resgate, a sua reflexão posicionava-se, justamente, numa ideia de corte interno, de desajuste interior, procurando a irrespirabilidade pictórica enquanto modo de ver uma deslocação ambiental que poderia representar a passagem de um ambiente não natural hospitaleiro para um ambiente natural e inóspito. E essa transição fazia entrever no peixe a malha urbana, e nas escamas do peixe se via contida a própria rede. A sua passagem parecia privilegiar paisagem menos rarefeitas, ainda que desumanizadas e destruídas pelo humano, supondo-se a cor como uma exuberância de destruição.
Há nesta passagem do mar para a floresta um elemento sublime e subliminar. Onde a sua ‘fase’ Underwater dialoga — sintomática e profeticamente — com La fôret merveilleuse de Amadeo Souza-Cardoso, na sua florescência exótica e abundante, a sua Floresta Negra parece introduzir agora o seu volume monocromático, passando a sugestiva luxúria visual a um olhar do artista envolto num aparente enigma monocromático. A floresta deixa de ser escamática e passa a ser esquemática. De resto, a ausência do peixe localiza in absentia a desterritorialização do universo bestial que era, ali, lugar de humanidade.
É como se esta floresta de JAS reatasse o conflito anterior das cidades e amputasse a fauna em benefício de uma desolação, de uma não-presença, um lugar de solidão interior que é localizado precisamente na ausência de um qualquer bestiário. Aparentemente, a ordem e desolação de Underwater ter-se-ia encarregado de resgatar os animais a salvo do olhar de desolação do mais recente JAS. O seu olhar parece agora ser aquilo que vê do interior de uma cela asfixiante que só por ilusão claustrofóbica parece minúscula. A floresta, na sua sinistra espacialidade, parece reconfigurar o viajante perdido numa rede de enganos visuais que é o olhar sobre si mesmo. E aqui se explica a natureza enigmática das pinturas. Elas parecem evocar a natureza dos quebra-cabeças, análoga ao jogo dos 15, em que cada pastilha deverá ser deslocada até se resolver a ordem numérica através da movimentação da sua adjacência. A inclusão desta possibilidade de fractal transformado em quebra-cabeças graceja com a aparente dimensão labiríntica da floresta.
Não é tanto o que é visto mas o que vê aquele que dá a ver, no fundo, viajante de si mesmo. Ele é agónico em si, do seu olhar, e o abandono de qualquer tentação figurativa espelha o encarceramento a que o seu olhar foi votado. É como se o viajante não pudesse visitar outra coisa que não a si, estando, precisamente, em si encarcerado. Aparentemente, a asfixia subaquática de Underwater deu lugar a uma irrespirabilidade da Floresta Negra, a um desassossego que visita a agonia do observador, e propõe e amplia, em certo sentido, os capilares da alma.
A certa altura de A Floresta de Enganos de Gil Vicente, Copido pergunta a Apolo: Pues, qué haces por aqui, por esta floresta de engaños? Estaremos perante um tipo de rescaldo, uma visitação a uma representação que emula o material que é extraído da floresta e que possibilita o próprio medium do artista. Assim que o artista possa no fundo estar a interrogar-se sobre a prisão do seu olhar, olhando de dentro a sua própria obra à procura de uma clareira de sobrevivência.
Daniel Jonas